domingo, 30 de agosto de 2009

LAMBENDO OS DEDOS



Uma amiga querida que adora colocar frases interessantes no MSN, me mandou essa aqui de William Shakespeare: "É um péssimo cozinheiro aquele que não pode lamber os próprios dedos." Ainda bem que lambo os meus com prazer.
O que é lamber senão re-conhecer o des-conhecido através da língua. Filhotes lambem e são lambidos ao nascerem, é o bichinho experimentado, reconhecido, adotado. As mães não o fazem com suas crias (bem que gostariam), experimentam por outros meios, a saborosa maternidade. Os bebês, que critérios ainda não têm, lambem, lambem e na ponta da minúscula e curiosa língua está a descoberta do novo, é fome de fome e fome de mundo. E o pequenino explorador segue feito felino, lambendo o que lambível lhe parece. Levam absolutamente tudo à boca, enquanto as mães se descabelam com tamanha lambição... “Nãooo, eca, é caca!”. E lá se foram, empurrados pela língua, uma asinha de barata ou um chiclete alheio mastigado ou um pedaço de papel, um botão, uma bituca de cigarro... Comida que é bom, é cuspida, rejeitada... Bicho esquisito é criança. O pior é que elas crescem e as estranhezas da idade miúda, viram graça, saudade...
Coincidência ou não, o fato é que no mesmo dia em que recebi a mensagem da minha amiga, uma outra, minha chef préférée que não perdeu o gosto pelas coisas simples da infância, me enviou uma receita de lamber os beiços, os dedos, o prato. Agora estou eu aqui, falando de lambição, de lambança de criança, o texto surgindo aos poucos, feito retrato tirado no lambe-lambe... Impressionada com a destreza e o valor de tão bizarro órgão. Dispa-se das frescuras, ponha a mão na massa dessa Cuca de maçã que vai lhe trazer um gosto esquecido, quase perdido daqueles velhos e bons tempos de melecagem, digo, molecagem... A cuca é um bolo típico alemão coberto com uma farofa doce e recheado com frutas. Para fazer a sua, você vai precisar de 1 xíc. de açúcar, 4 colh. de sopa de margarina, 3 ovos (clara e gema separadas), 2 xíc. de farinha de trigo, 1 colh. de sopa de amido de milho, 1 colh. de café de fermento, 1/2 xíc. de leite, 1 pitada de sal, raspas de 1 limão, 2 colh. de sopa de suco de limão e 2 maçãs gala com casca e sem miolo. Para a farofa: 2 colh. de sopa de margarina, 1/2 xíc. de açúcar, 3 colh. de sopa bem cheias de farinha de trigo e canela em pó. Misture o açúcar, as gemas, as raspas de limão e a margarina até ficar um creme clarinho. Junte o leite, a farinha, o amido de milho e o sal. O fermento e as claras em neve vão por último. Para fazer a farofa, misture os ingredientes e amasse com a ponta dos dedos pra ficar bem soltinha. As maçãs são fatiadas bem finas e regadas com o suco de limão. Essa mistura é colocada em cima da massa e depois coberta pela farofa. Leve ao forno pré-aquecido a 180° por 45 minutos. Coma pelo menos um pedaço com as mãos e depois, claro, lamba os dedos!
Bon appétit.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

OVINHOS FRITOS



“Fertilidade masculina pode ser frita em banco aquecido”. “Estudo indica que produção de espermatozóides é prejudicada se a temperatura escrotal fica acima de 36°C.” É sério gente, segundo cientistas, o calor do assento de um veículo pode mesmo prejudicar a produção de espermatozóides, uma vez que aumenta a temperatura escrotal acima da ideal, entre 35° e 36°. Tal aquecimento, ainda que mínimo, pode interferir na (re)produção humana... O artigo é interessante, bem escrito e esclarecedor, mas a imagem de dois ovinhos fritos sobre o banco de um carro é que não sai da minha cabeça. É o lado cômico diante da gravidez, digo, da gravidade do assunto. E claro, a tentação de esticar o tema é grande, mas do meu jeito, aproveitando o gancho pra falar deste que é um dos alimentos mais polêmicos: o ovo. O que veio antes, o ovo ou a galinha? Considerando que a galinha nasce do ovo e o ovo é colocado pela galinha, fica no mínimo confuso, determinar o responsável pela criação original. De acordo com a teoria da evolução, o ovo veio primeiro. “Deve-se considerar que o ancestral da galinha (ainda não é uma) botou o ovo com a mutação que resultaria a moderna galinha. Esta por sua vez, apenas perpetuou essas mutações. Se fizer a mesma pergunta a esse ancestral, chegaremos ao ser mais primitivo que deu origem a toda a vida. Ou seja, biologicamente, o ser mais simples vem primeiro, ao passo que o mais complexo vem posteriormente. Segundo a teoria criacionista, a galinha veio antes, criada por Deus no início dos tempos.” O dilema permanece mas non, rien de rien me impedirá, apesar de toda confusão, de louvar esse alimento valioso que permeia nossa história. Sem falar do seu valor nutricional nem da sua reputação de vilãozinho, pense somente em como as coisas teriam sido sem ele. O que teria acontecido sem as gemadas douradas de nossas mães e avós que restauravam qualquer um com o pé na cova? Que gosto teriam tido nossas manhãs sem o ovinho caipira quente e mole, levemente salgado e preparado com tanto capricho? Valha-me Deus, pense no pão-de-ló, nos bolos, nos doces, nos cremes, nas omelettes... Não estou dizendo pra ninguém viver de ovo, mas que ovo é vida, isso não dá pra negar.
Tá pensando que fritar ovo é pra qualquer simples mortal? É teste que reprova nas grandes escolas de cozinha. Quer fazer ovos fritos perfeitos? Doure os ovos na manteiga, em frigideira (cuidado para não estragar as gemas). Salgue só as claras, frite um pouco sobre o fogo e leve ao forno quente até velar as gemas (elas e uma parte da clara devem permanecer macias). Acerte as beiradas com cortador redondo e voilà, seus ovinhos estão fritos.
Bon appétit.

domingo, 16 de agosto de 2009

NO CALDEIRÃO DE MADAME LARA


E o festival chega ao fim. Foram seis dias de orgia com os sabores de Mato Grosso. A cozinha do Hotel Deville borbulhou feito caldeirão de bruxa, mas em volta das imensas panelas que exalavam o perfume dos nossos frutos, estava uma fada, Edna Lara. Mulher concentrada, de olhar penetrante que vai do azul angelical ao verde satânico (quem mandou meter a colher no caldeirão de madame Lara?!), um poço de energia e simpatia. E claro, eu estava por ali, na cola da chef, à espreita de um gesto, um movimento, o pulo-do-gato (nesse caso, da gata) que daria à receita clássica, um tempero à la Edna. Presenciei alguns “pulinhos” e nem pense que vou revelar tudo aqui, assim, de mão beijada, já que pra isso tive que ralar, digo, descascar muiiiitas bananas... e dá-lhe banana-da-terra pra cortar em pedaços generosos e coroar o cozidão, picada em cubinhos pra fazer a farofa, em lâminas pra fritar... Não estou reclamando (eu diria que foi até excitante manipular tantas), faria tudo de novo só pra gravar para sempre na memória gustativa, todos os cheiros e os sabores dessa região tão generosa... Da Maria Izabel, passando pela Mujica de Pintado, rumo à Galinha caipira com arroz, sem esquecer o Feijão empamonado, nem o Quibebe de mamão verde, muito menos a Farofa de banana-da-terra, opa, quase pulei a Paçoca de pilão... E depois do Doce de goiaba em calda e a Laranja seca, só mesmo um Licor de folha de figo pra ajudar a digestão que se Deus quiser, vai ser feita no aconchego preguiçoso de uma rede... Quem comeu, comeu; quem não comeu, corre atrás do livro dela, recheado de receitas e fotos maravilhosas que têm a cara de Mato Grosso, porque passar fome, nem Deus há de deixar!
Escolhi uma receita muito simples e ao mesmo tempo intrigante, à base de quê, de quê? Adivinhe...
Sopa de banana-da-terra verde. Descasque 5 bananas bem verdes e lave-as. Corte-as em cruz bem fina. Passe água fervente para retirar as enzimas. Numa panela com 2 colheres de sopa de óleo, doure 1 cebola média picada e 3 dentes de alho socados. Junte as bananas e abafe a panela por alguns minutos. Coloque um pouco de água e sal e cozinhe por mais cinco minutos. Tampe a panela. Mexa de vez em quando para não secar. Depois de cozida, acerte o sal, coloque mais água, pimenta-do-reino moída na hora e cozinhe até engrossar. Desligue e cubra com salsa e cebolinha picadas.
A culinária Mato-Grossense é farta, preparada em panelões e sempre compartilhada. Quer coisa melhor?!
Bon appétit!

sábado, 1 de agosto de 2009

O ESCRITOR REALISTA & O CHEF SURREAL



“O escritor novo, moderninho, todo bossa nova, em busca de uma nova maneira de enviar sua mensagem ao leitor, o escritor cheio daquela doença atual de querer complicar o óbvio, sentou às margens de sua máquina de escrever disposto a iniciar um romance que iria revolucionar a técnica literária e o estilo do romance no Brasil. Colocou um papel branquinho na máquina e respirou profundamente. Sentia-se que o escritor novo estava às margens da criação genial... O escritor novo que buscava a suprema originalidade olhou com ar superior para o papel branco a sua frente e começou a escrever: "João atravessou o relvado em direção a Maria, que corria para ele, de braços abertos. Enlaçou-a e disse...". Aí o escritor novo parou um instante para pensar. Não lhe vinha de imediato a frase certa... Acendeu um cigarro e ficou pensando um pouquinho. Resolveu não forçar a barra. A inspiração teria que vir espontânea... Depois voltou à máquina, releu o que escrevera mas não sentiu — mais uma vez — as palavras brotarem em sua mente para chegar ao papel. O escritor foi até o banheiro, molhou um pouco a fronte com água fria e voltou para sua cadeira. Releu o que escrevera: "João atravessou o relvado em direção a Maria, que corria para ele, de braços abertos. Enlaçou-a e disse...". Aí o escritor parara, sem achar a expressão certa, mas naquele momento ela lhe aflorava no cérebro, felizmente. E o escritor novo, moderninho e preocupado em ser diferente sorriu, para depois escrever: — Eu te amo.” (Stanislaw Ponte Preta)
A tal “doença de querer complicar o óbvio” já está com um pé na cozinha (os dois talvez). "Atire a primeira faca" quem nunca comeu uma porcaria assinada por um desses chefs modernos, cheios de nove horas, arrogantes, estressados, marrentos mesmo que transformam tudo em mousses insossas, mas salgam sem dó nem piedade a conta do infeliz comensal que nem faz ideia do que acabou de engolir (na verdade a coisa lhe desceu goela abaixo sem esforço algum... tadinho, era uma espuma de champignons). Pratos são rebatizados senão não atravessam as portas da cozinha contemporânea... Nascem o carpaccio de berinjela (aliás tem carpaccio de tudo o que lhe passar pela cabeça), o caviar de qualquer coisa que tenha sementinhas redondas e macias (o caviar nacional, feito do babento quiabo já fez os franceses babarem tanto quanto), o sorvete salgado e muitas outras esquisitices que certamente nossas avós não reconheceriam como comida. Nada contra os (bons) chefs que inventam pra quebrar a rotina, pra surpreender nossas papilas. Só queria dizer que surpresas desagradáveis também existem e são igualmente marcantes. Comida tem que dar prazer, simples! Cozinhar é antes de tudo um ato de amor (nisso não dá pra mexer, senão azeda), seguido de ingredientes de primeira e um pouco de técnica. É alquimia pura, bruxaria das boas... Você não tem que engolir o mau-humor de chefs à beira de um ataque de nervos... Haverá sempre uma pizzaria de algum italiano barulhento, alegre e debochado perto de você... Nesse caso, buon appetito!