quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O QUE OS OLHOS NÃO VEEM, O PALADAR SENTE

“Dans le noir” (No escuro) é um restaurante parisiense criado a partir dos conceitos da exposição “Diálogo no escuro” (montada desde 1988 em um bocado de países), em que os participantes são orientados por guias com deficiência visual, em um ambiente escurecido. No Dans le noir o jantar é completamente às cegas e os comensais têm, assim, o paladar desafiado. Uma experiência sensorial, no mínimo, curiosa e, sem dúvida, tentadora. Perceber os gostos, os cheiros, as texturas sem a santa ajuda da visão deve ser intrigante e um tanto quanto sensual... É mergulhar nu em um belo lago desconhecido, eu diria. Os menus surprises são propostos por um chef e um perito em vinhos e os clientes estão sempre sob a orientação e os cuidados de pessoas cegas. Quem já aprendeu que uma boa experiência vale mais que uma longa conversa fiada, é só procurar o famoso restaurante na capital francesa (Paris IV), em Londres, Barcelona, NY ou Kiev, e aproveitar ao máximo o simpático escurinho... Todo mundo sabe que goiano vê com as mãos e come com os olhos. Fico aqui, me imaginando, goiana que sou, quase em pânico diante da abstinência visual. O Dans le noir ainda não me pegou, mas está quase. É uma questão de tempo. Depois conto tudo o que vi, digo, o que não vi e sobretudo o que senti no escurinho do restaurante. Fica aqui a ideia: uma refeição de olhos vendados, pra fazer com os amigos mais corajosos. Escolha um menu divertido, com ingredientes originais que lembrem um país específico. Faça, por exemplo, uma entrada mexicana, seguida por uma especialidade marroquina com acompanhamento francês, e finalize com uma sobremesa italiana. Ou ainda, cada participante leva um prato surpresa para ser degustado por todos e quem conseguir identificar o maior número de ingredientes vence o desafio. Prepare comidas que dispensem o uso de talheres ou use somente colheres (nem preciso dizer o motivo). Abuse de aromas como o do café, do chocolate, da baunilha, das especiarias, das frutas cítricas. Mas não abuse dos convidados, incrementando demais os pratos e criando uma confusão dos diabos e pelamordedeus não me venha com 'espuma de champignons' que já é um horror comer (ou beber, sei lá) de olhos bem abertos, imagine no breu. E não convide ‘gatos’, eles enxergam no escuro, vão trapacear. Treine antes fazendo outras coisinhas na escuridão total, pode ser bem interessante.
Bon appétit!

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

"NUNCA IMAGINEI UM DIA"

“Nunca imaginei um dia” é o título de umas das crônicas da Martha Medeiros, publicada em 27 de dezembro de 2009. Trata-se de como nos orgulhamos bestamente em dizer “eu jamais vou fazer isso” ou “nem morta eu faço aquilo”. Ela fala de como essas frases podem limitar nossas chances de experimentar o novo e nos privam de emoções. Ela conta, ainda, como foi difícil recomeçar um relacionamento com alguém totalmente diferente dela sem deixar de ser ela e que abrir o leque de possibilidades é um exercício que amplia nossa visão de mundo. Mulher sabida. Já faz um tempo libertei-me dessas frases e a vida tem sido complacente comigo, generosa mesmo. Nunca imaginei um dia escrever sobre comida, voar de balão, saltar de pára-quedas, atravessar o Atacama, ver um arco-íris no deserto de sal na Bolívia e o pôr-do-sol caramelo nas dumas marroquinas, nem 'sentir' os campos de lavanda da Provence; fazer o caminho de Compostela a pé foi quase um milagre e outros ‘milagres’ aconteceram... Ver as crias das minhas crias talvez seja o maior deles. Mas certamente ainda há um bocado de ‘nunca imaginei um dia’ pra levar a cabo: convidar o Paulo Ricardo (é, to falando do cantor) pra jantar e ele aceitar; cozinhar com destreza lagostas, lulas, polvos e outros bichos estranhos do mar; fazer um safári na África e dar uma volta gastronômica ao mundo; sair nas páginas centrais da Playboy (calma,é brincadeira), aprender a cantar e a gostar de ginástica e por aí vai... Mudar é próprio do ser humano. Aceitar que as coisas mudem, também. Mexer-se é sentir-se vivo. Experimentar e escolher é o que nos molda... As festas de fim de ano estão pra começar. Lá vem tudo de novo, tudo igual: ceia de Natal e o peru pagando o pato; tender, farofa de ameixa, nozes pra quebrar, champagne pra estourar, rabanadas pra engordar; presentes pra comprar; roupa nova pra virada do ano (qual é mesmo a cor da calcinha pra receber 2012?). Queria mesmo era fazer um Natal à la Jesus Cristo, com fartura de amor; e quando a fome apertar, comer pão com azeite, azeitonas rechonchudas e frutas secas; um carneiro assado com figos pra comer de joelhos (aproveite pra rezar e agradecer) e vinho, água, vinho, água... Pra quê mais? Parafraseando a Martha: já que é pouco provável que 2012 seja diferente de qualquer outro ano, que a novidade sejamos nós. Não é lindo isso? Surpreenda-se sempre. Bon appétit.

PRATO INTERROMPIDO

Que ninguém me interrompa enquanto escrevo.
Interromper é romper no meio, é interferir ou ferir no meio de uma ação. É romper, ferir, rasgar, desmanchar o que foi começado. Uma interrupção está frequentemente associada a algo negativo. Uma reunião, uma conferência, uma viagem, uma conversa decisiva, uma piada engraçada, uma transa apaixonada; o sono reparador, um filme, um concerto, um tratamento importante, um sonho bom; e uma pá de coisas boas, quando interrompidas, geram frustração e desconforto. O silêncio vital, rompido, é quase um golpe fatal. Até xixi interrompido vira transtorno. Porém, uma interrupção pode salvar sua vida, um assalto interrompido, por exemplo. Agora imagine o preparo de um prato gostoso interrompido... Na véspera desse polêmico (?) 11.11.2011 encontrei um velho conhecido perdido de vista. Ficamos felizes com o reencontro. Há uns quinze anos, sei lá, começamos um prato em uma cozinha improvisada no shopping mais antigo da cidade. A confecção da refeição foi interrompida por uma série de motivos que acho desnecessário listar agora. Fomos afoitos. Tivemos coragem demais e experiência de menos. E é claro que uma fórmula dessas só podia dar em nada, ou quase. Mas aqui se faz, aqui se paga. Cá estamos nós, de novo, mais maduros (logo,mais doces, como as frutas?), debochando do ‘erro’ cometido, rindo das armadilhas mundanas, das teias tecidas pelo tempo. Ah, meu caro Pierre, nosso baião de dois destemperou, passou do ponto, desandou. Seguimos rumos diferentes. Só não foi em vão porque esse mundinho é mesmo uma ervilha: é miúdo, rola pra lá, rola pra cá e mostra que algumas coisas ainda estão no mesmo lugar, ficaram ali, engavetadas. Sei que você é ‘bom de arroz’ e se também for ‘bom de feijão’, um novo baião de dois pode dar o que falar. Aqui vai a lista de tudo que você vai precisar. Seja criativo. Providencie 500gr de feijão verde ou mulatinho ou fradinho, 1 xíc. de coentro ou salsinha picados, 2 xíc. de arroz lavado e escorrido, 1 pimentão vermelho picado, 1 cebola grande picada, sal quanto baste. E não se esqueça da manteiga de garrafa, amarelinha e brilhante, pra untar tudo e unir ainda mais os sabores na panela. A propósito, se precisar de uma panela, conte comigo, tenho uma perfeita. E a pimenta pode deixar que eu levo.
Bon appétit!

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

FELIZ POR TUDO

Tenho uma amiga meio debochada que diz que não posso ver um ponto vermelho no calendário que lá vou eu, de mala e cuia, rumo a um destino qualquer. Exagero dela. Mas não se pode negar que ninguém como o brasileiro pra emendar dias úteis com um feriado nacional, de preferência bem no miolo da semana, e tecer o popular feriadão, aproveitar a folga inventada, apertar os cintos (em todos os sentidos) e decolar. Confesso que gosto de voar e gosto de aeroportos. Esse frenesi caoticamente organizado (às vezes nem tanto) me assombra e me diverte. Pois bem, mala e cuia despachadas, só me resta dar uma corridinha pra primeira livraria que pintar (em muitos aeroportos, a única). Experimente viajar sem levar livros de casa, só pra ter uma boa desculpa pra comprar algo novo. Há sempre um livro à nossa espera por aí, eu garanto. Como você pode adivinhar, fui direto para as prateleiras de livros sobre comida. Dei uma espiadela, mas nada me fez salivar ou me abriu o apetite, nada que valesse a pena abrir a bolsa. Mais uma voltinha, feito ritual de magia, em torno da pilha central dos mais vendidos e dei de cara com um livro da Martha, não uma Martha qualquer, aquela que diz que somos todas Doidas e santas, a do Divã, a que fala das Coisas da vida, a De cara lavada, a mesma do Topless, sabe? Pois é, a senhora Medeiros também é Feliz por nada. Comprei o livro. Recheado de crônicas leves e gostosas, Feliz por nada, mostra que somos o que somos, um bando de imperfeitos bem-intencionados (ou não) e que o melhor lugar pra se estar, independentemente das circunstâncias, é dentro de um abraço. Abri o livro, ali mesmo, na sala de embarque, feliz da vida, feliz por tudo, feliz de graça. Li a primeira, comecei a segunda: Quando Deus Aparece. “Não sendo visível aos olhos, ele dá preferência à sensibilidade como via de acesso a nós.” Fiquei ali, lendo, num chororô por dentro, discreto, mas incontrolável, sentindo e aproveitando mais uma aparição de Deus, desta vez nas palavras da Martha. Tentei segurar as lágrimas, quase consegui; prolongar o deleite do momento, em vão. Anunciaram meu voo. Como pensar em comida em uma hora dessas? Só consigo pensar em doçura, em anjos humanos ou não. É isso aí, vou fazer o Pudim dos Anjos (pra você, Martha), com 1 cx. de maria-mole de coco, 200ml de leite de coco, 1 lata de leite condensado, 1 cx. de creme de leite e 2 ovos (se quiser). Dissolva a maria-mole em 1 xc. de água fervente. Coloque tudo no liquidificador e bata bem. Despeje numa forma para pudim, previamente caramelizada, e leve à geladeira por, pelo menos, 4 horas. Incremente com o que seu coração pedir. Bon appétit.